quinta-feira, 30 de abril de 2015

Last Chance

Se me perguntarem qual a principal vantagem de se ter Ano Comum, eu vou dizer sem pensar muito: "última chance para descobrires o que realmente queres ser antes da derradeira escolha..."

Após a grande desilusão de não atingir aquela gigantesca nota a que me tinha proposto e que julgava ser essencial para ser feliz o resto da minha vidinha, a minha mente altamente direcionada para a racionalização decidiu traçar uma estratégia alternativa, um plano B urgente. Cheia de dúvidas e medos, com um certo pessimismo, confesso, e alguma melancolia, comecei o Ano Comum por estágios/especialidades que eram para mim hipótese de ingresso e deixei a ideia de voltar a repetir o exame num plano C.

Psiquiatria sempre esteve no meu "Top 2", num jogo de forças flutuante com a Gin/Obs, que ora ganhava poder, ora era esbatido pelos medos, por isso não poderia deixar de repetir.
Estive um mês a fazer estágio em Aveiro em Psiquiatria e não houve um único dia que não sentisse a felicidade e a realização que procurava...a tal que achava que tinha perdido. 
De repente, quando me apercebi, pensar em Gin/Obs, nomeadamente que não iria fazer essa especialidade, já não me causava nem mágoa, nem inveja, nem tristeza. Dava por mim a sorrir no carro ao vir embora, a pensar no quão gratificante tinha sido aquele dia e poderiam ser os restantes nesta profissão...
Ainda nem o estágio ia a meio e um dia respondi naturalmente a alguém que me perguntava se estava a gostar da experiência: "Estou a gostar tanto que quero mesmo ser Psiquiatra!" 
E voilá, essa felicidade em que andava, o entusiasmo no olhar que o meu marido notava ser diferente quando lhe contava dos casos que tinha visto, verbalizou-se e ganhou vontade própria.

Um dia qualquer de manhã, estávamos eu e o meu tutor do estágio a falar e ele diz-me: "quando for fazer a sua escolha, não se esqueça da Psiquiatria...tem olho para isto...". Hoje ao me despedir dele reforçou: "estou a sua espera no próximo ano...". Sorri profundamente grata pelo reconhecimento que aquela frase representava. Fiz aqueles quilómetros para casa feliz.

segunda-feira, 6 de abril de 2015

Tu não vais conseguir salvar todas as pessoas que encontrares...

Apesar dos poucos dias de avanço, Abril tem-se mostrado um mês prometedor para mim. Se já desconfiava que seria bom fazer estágio de Psiquiatria para tirar as minhas dúvidas interiores, agora tenho total certeza.
Desde o dia 1 que é assim, lá vou eu rumo a Aveiro todos os dias de manhã no meu carrito. Nota-se logo a diferença de ter de acordar bastante mais cedo do que nos tempos em que ia para o Centro de Saúde, que era a 5 minutos a pé de minha casa.
Por causa do fim de semana prolongado de Páscoa, ainda só somei 3 dias de estágio, mas gostei mesmo muito de todos. A equipa é jovem e acolheu-me bem e me parece que todos têm boa saúde mental... =P

Na quinta-feira estive de urgência das 8h às 20h - foi a minha primeira urgência como médica (porque no estágio de MGF não se faz urgência) e devo confessar que me agradou imenso, tanto os casos a que assisti, como essa nova sensação de se ser médico e não o estudante, num serviço de urgências.
A certa altura do dia, num momento mais parado, lancei ao especialista com quem estava uma das perguntas que mais me incomoda sobre a Psiquiatria:
- "A noção que tenho é que a Psiquiatria não cura ninguém...os doentes acabam sempre por voltar com recaídas... Isso ao final de algum tempo, não acaba por ser desmotivante para o médico?"
E ele respondeu:
-"Se reparares bem, são muito poucas as especialidades que realmente curam...A grande maioria dos médicos controla sintomas e impede ou atrasa a progressão das doenças, dá qualidade de vida, faz a prevenção das mesmas e resolve agudizações." E continuou: "Não sinto essa desmotivação a que te referes...o importante é não ter demasiadas expectativas, nem na Psiquiatria nem noutra especialidade qualquer. Tu não vais conseguir salvar todas as pessoas que encontrares..."

"Tu não vais conseguir salvar todas as pessoas que encontrares..."
 Eis um lado da Medicina é que é totalmente diferente daquilo que habitualmente tanto médicos como população espera dela, pela Esperança que a ciência consiga mais e melhor todos os dias. Eu sou uma pessoa esperançosa por natureza, que espera sempre o melhor dos outros, que acha que amanhã poderão mudar... Mas também sabia que há determinadas pessoas de quem é difícil esperar essa tal mudança. Distúrbios de personalidade, dependências de uma vida... E doía pensar que iria encontrar essa realidade de forma mais acentuada no mundo dos doentes Psiquiátricos. Acho que costumava pensar nisso do lado sombrio, pelo medo provavelmente de um dia deixar de me sentir realizada. Aquele especialista, com as suas palavras certeiras e repletas de anos de experiência, mostrou-me o lado mais positivo... A Psiquiatria de facto é fundamental na vida de muitas pessoas e famílias, dá qualidade de vida a muitos doentes e esse é o lado positivo a que de deve dar valor. Acho que só agora entendo de verdade o porquê de um amigo meu quer ser Oncologista.


quinta-feira, 2 de abril de 2015

Crónicas e Reflexões de uma Interna em MGF - O que nem às paredes confesso




         A senhora tinha ido ao consultório para mostrar uma radiografia do ombro e umas análises. Estava tudo bem, e ela pareceu ficar contente com a notícia. Depois pergunta no seu tom natural:
         “Senhora doutora, gostava que me dissesse para que servem estes medicamentos” – enquanto tirava da sua mala uma saca com 3 caixas. Eu, inocente e excessivamente atenciosa neste caso, ia começar a explicar para que servia cada um deles, quando o médico de família da senhora interrompe a minha voz no momento certo e perspicazmente pergunta:
         “De quem são esses medicamentos?”
         “São do meu filho…” Sorriu nervosa. Sabia que tinha sido apanhada. Estava a falar de um filho adulto e completamente independente, que também era utente do mesmo médico.
         “Minha senhora, o que eu prescrevo ao seu filho é entre mim e ele e a isto chamamos ‘sigilo médico’. Se quiser saber o que são e para que servem, deve conversar abertamente com ele e expor-lhe a sua preocupação.” Mantinha um sorriso atencioso enquanto falava com aquela mãe preocupada, mas não poderia deixar de a repreender.
         Foi uma lição gigantesca. Sigilo médico não é nenhuma novidade para mim. Foi tema muito debatido nas aulas de Ética Médica do 4º ano e prometi guardar os segredos de cada doente mesmo depois da sua morte no Juramento de Hipócrates, que não foi assim há tanto tempo.
         A partir desse momento, que felizmente para mim ocorreu logo no início do estágio, criei um radar de perguntas maliciosas. Já não vou na cantiga da velhinha que diz como quem não quer nada que viu na sala de espera o Sr. Folano ou o Sr. Cicrano, e depois acrescenta num tom disfarçado: “O que veio cá ele fazer?”. Ou então: “Ele está melhor?”, como se estivessem por dentro do estado de saúde do vizinho com quem nunca fala…
         É verdade, médico de família conhece os muitos elementos de uma família, de muitas famílias vizinhas e não pode cair nas armadilhas linguísticas que os doentes lhes tentam impregnar sobre os filhos, os pais, os conjugues, os vizinhos até… Médico de família ouve muitas versões da mesma história e não pode desmenti-las, nem comenta-las como se soubesse mais do que a pessoa lhe está ali naquela momento a contar…

quarta-feira, 1 de abril de 2015

Crónicas e Reflexões de uma Interna em MGF - A Nova Geração




         Pirâmides etárias são gráficos que que representam a população de acordo com as idades e os sexos de uma determinada amostra. O conceito é simples: a base representa a taxa de natalidade, a parte intermédia a população adulta e por fim, o ápice dá-nos a expectativa de vida e a população idosa. Uma população jovem tem, como se compreende, uma base larga e um ápice estreito. Portugal está a ficar longe dessa ideal situação. Segundo as previsões do Instituto Nacional de Estatística, em 2050 cerca de 80% da população portuguesa estará envelhecida e dependente.
         Quase não seria necessário fazer-se inquéritos sobre a demografia nacional, bastaria consultar a agenda dos médicos de família para cada semana. Eu estive 3 meses no centro de saúde e nunca assisti a nenhuma consulta pré-concepcional. Pode ter sido azar, claro, mas se fossem muitas seria mais difícil não assistir a pelo menos algumas, não? Onde estão os casais prontos a ter filhos? Onde está a vontade e a disponibilidade económica para construir uma família? Onde estão as mulheres que não querem ter só um filho, e só aos 40?
         Consultas de saúde materna também se podiam contar pelos dedos de uma só mão. O horário está lá reservado, às quintas-feiras de manhã, à espera desesperadamente que venham as senhoras de barriguinha, mas nada… O que acontece então é que esse horário acaba por ser preenchido pelas consultas mais requisitadas – doenças crónicas: diabetes, hipertensão - que atingem maioritariamente a faixa etária acima dos 60-70 anos… Parece uma “pescadinha de rabo na boca”, como diz o povo, um ciclo viciante.
         Como jovem médica, o que me parece é que há uma estreita ligação entre a realidade da saúde materna e a da saúde infantil, ou seja, entre a carência de gravidezes e educação centralizada nas necessidades materiais das crianças.
         Já ouvi casais falarem que “a vida está muito complicada, não podemos ter filhos…eles hoje em dia precisam de tudo.” O desemprego é infelizmente uma realidade portuguesa e quanto a isso, nada a acrescentar, e há de facto pelo Portugal fora centenas de famílias que não podem ter filhos . Mas depois temos aquelas outras famílias, muitas por sinal, que têm estabilidade económica e falam da mesma forma. Serão os filhos que precisam de tudo mesmo, ou quererão os pais dar-lhes tudo? A ideia que tenho é que hoje em dia as pessoas querem ter só um filho, mas “que nada lhe falte”. Este pequeno pormenor é a chave de toda a alteração. Surgem então as famílias com apenas um descendente, ao qual dão tudo quanto podem e lhes transmitem, sem saberem ou sem parecerem ligar, a ilusória e destruidora educação que a vida é assim mesmo – pode ter-se tudo.
         Esta minha opinião não é infundada em ideias vagas, tenho imensos exemplos reais, só falando nestes 3 meses de estágio, e em todas as etapas de vida. Há casais que se queixam que têm “pequenos ditadores” em casa, que aos 2 anos já decidem a sua pequena vida mais do que os seus pais, desde o que comem ao que vestem, com as birras com as quais hoje em dia os pais dia não sabem lidar. Ainda há poucos dias vi uma mãe rir-se orgulhosamente da birrinha que a filha de 3 anos fazia no consultório e a incentivava: “Tu hoje não queres fazer isto pois não? Prontos, ela hoje não quer…”, enquanto a abraçava e mimava. Depois vem as terríveis histórias dos filhos já homens que com 20 anos não querem estudar nem trabalhar, maltratam os mais velhos verbalmente, e de quem os pais já não conseguem nada, nem autoridade, nem educação, nem respeito.
         É difícil educar devidamente, é necessário ser-se presente, forte, convicto e equilibrado. E depois das muitas histórias de filhos e pais que ouvi e das muitas consultas de saúde infantil que fiz, creio ser impossível não refletir sobre o assunto... Talvez o médico de família possa ter uma posição de destaque no amadurecimento da nova geração de pais e filhos e na orientação dos mesmos, através de exemplos e explicações científicas, e como alerta para os sinais da necessidade de uma intervenção mais especializada. Talvez seja fundamental toda a sociedade refletir em questões mais filosóficas mas extremamente oportunas, que parecem esquecidas, como: “o que faz realmente falta a uma criança?”, “onde fica a noção de partilha entre irmãos?”, “como educar para que os filhos tenham respeito ao dinheiro, trabalho e sacrifício dos pais?”.