quinta-feira, 2 de abril de 2015

Crónicas e Reflexões de uma Interna em MGF - O que nem às paredes confesso




         A senhora tinha ido ao consultório para mostrar uma radiografia do ombro e umas análises. Estava tudo bem, e ela pareceu ficar contente com a notícia. Depois pergunta no seu tom natural:
         “Senhora doutora, gostava que me dissesse para que servem estes medicamentos” – enquanto tirava da sua mala uma saca com 3 caixas. Eu, inocente e excessivamente atenciosa neste caso, ia começar a explicar para que servia cada um deles, quando o médico de família da senhora interrompe a minha voz no momento certo e perspicazmente pergunta:
         “De quem são esses medicamentos?”
         “São do meu filho…” Sorriu nervosa. Sabia que tinha sido apanhada. Estava a falar de um filho adulto e completamente independente, que também era utente do mesmo médico.
         “Minha senhora, o que eu prescrevo ao seu filho é entre mim e ele e a isto chamamos ‘sigilo médico’. Se quiser saber o que são e para que servem, deve conversar abertamente com ele e expor-lhe a sua preocupação.” Mantinha um sorriso atencioso enquanto falava com aquela mãe preocupada, mas não poderia deixar de a repreender.
         Foi uma lição gigantesca. Sigilo médico não é nenhuma novidade para mim. Foi tema muito debatido nas aulas de Ética Médica do 4º ano e prometi guardar os segredos de cada doente mesmo depois da sua morte no Juramento de Hipócrates, que não foi assim há tanto tempo.
         A partir desse momento, que felizmente para mim ocorreu logo no início do estágio, criei um radar de perguntas maliciosas. Já não vou na cantiga da velhinha que diz como quem não quer nada que viu na sala de espera o Sr. Folano ou o Sr. Cicrano, e depois acrescenta num tom disfarçado: “O que veio cá ele fazer?”. Ou então: “Ele está melhor?”, como se estivessem por dentro do estado de saúde do vizinho com quem nunca fala…
         É verdade, médico de família conhece os muitos elementos de uma família, de muitas famílias vizinhas e não pode cair nas armadilhas linguísticas que os doentes lhes tentam impregnar sobre os filhos, os pais, os conjugues, os vizinhos até… Médico de família ouve muitas versões da mesma história e não pode desmenti-las, nem comenta-las como se soubesse mais do que a pessoa lhe está ali naquela momento a contar…

2 comentários:

  1. Olá!
    Da última (e única, até hoje) vez que comentei no teu blog ainda estavas a preparar-te para o Harrison. Apesar de se terem passado apenas alguns meses, lendo o teu blog parece que já foi há imenso tempo! Li a maioria dos posts que aqui colocaste desde então e foi como ler os passos que, provavelmente, me aguardam dentro em breve. A propósito, muitos parabéns pelo casamento!
    Estou neste momento a estudar para a PNS só que estou a começar muito tarde e o stress por vezes torna-se paralisante :S Não vejo a hora de cumprir esta etapa e começar uma nova como IAC.
    Gostei muito de ler os teus últimos textos porque reflectem uma visão muito humana da Medicina com a qual me identifico muito. Confesso que fico até surpreso pela falta de comentários :P As reflexões que aqui apresentas são dignas de serem lidas e comentadas. Sei que não é o que queres mas serias uma excelente médica de família, e isso é um elogio para qualquer médico! :) Aproveito para perguntar se me sabes dizer onde posso saber as notas de entrada nas várias especialidades porque por vezes sinto falta de algumas referências que ajudem a guiar e motivar o meu estudo.
    Da última vez que te escrevi disse que tinha a certeza que serias bem sucedida e aquilo que continuas a partilhar aqui é a prova de que não estava errado. Para se ser médico é preciso tirar o curso de Medicina, mas ser-se bom médico implica toda uma outra exigência que não se aprende senão prestando atenção à vida. Cumprir esse objectivo é mais dignificante que qualquer nota ou especialidade. Muitos parabéns por tudo, continua sempre a escrever!

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    1. Olá caro colega,
      Antes de mais, muito obrigada!
      Deixa-me o teu e-mail aqui num comentário se quiseres (eu não o publicarei) e eu envio-te um documento excel com todas classificações de todas as especialidades no ano passado.
      Beijinho e bom estudo...

      P.S. Não te deixes guiar demasiado pelas metas e pelas folhas que os l~outros já leram... Cada um é especial e sabe de si, é o que eu acho.

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