Quase todos os dias acontece alguma coisa que me faz lembrar o que tenho de melhor e de pior. Que me relembra o propósito de termos nascido, talvez.
Não há um único dia em que possa deitar-me para dormir e pensar: "hoje não fui competitiva, em pensamento, atitudes ou volições." Esse é, de facto, o meu maior defeito.
Se pudesse auto-consultar-me, que questões colocaria?
A primeira seria: quando pensa que tudo isso começou?
Não posso negar que na minha infância fui muito acompanhada, incentivada a estudar e a aprender... A minha irmã, com mais 6 anos que eu, ensinou-me o alfabeto em maiúsculas e minúsculas antes de entrar na primária. Sabia contar, escrever o meu nome, e já sabia fazer aqueles riscos aos ziguezagues, às ondinhas, às pirâmides e essas coisinhas todas... Era um excelente exercício para as duas: ela treinava o seu dom para ensinar e eu absorvia tudo quanto ela me pudesse explicar. Chamávamos-lhe "brincar às escolinhas". Quando entrei pro 1º ano, já levava um grande avanço.
O meu pai sempre nos disse "não importa o que os outros dizem, se se riem ou não, mas nós estamos na escola para aprender e se temos dúvidas, perguntamos sempre, sem vergonha!" Repeti-a essa ideia tantas vezes, que eu nunca vim para casa sem todas as dúvidas esclarecidas, em 12 anos de escola (não se conta a faculdade, onde é suposto já saber tudo). Devido à mesma ideia, sempre fui a mais participadora em todas as aulas (excepto inglês e francês, uma vez que as línguas nunca foram o meu forte).
E toda a família cedo me começou a compensar pelos bons resultados, com elogios e mais força para avançar.
À hora do jantar a televisão era desligada e aquele tempo era para falarmos do que tínhamos aprendido e das coisas que tínhamos feito na escola, e os meus pais nos respectivos trabalhos. Nunca me faltou atenção. Quando trazia uma nota para casa, nem era preciso perguntarem nada porque eu dizia cheia de orgulho quanto tinha tirado. As primeiras palavras eram "muito bem! Parabéns! e imediatamente depois, vinha a habitual pergunta: "e quanto tiraram os outros?" E aqui se inicia um caminho vicioso - o da competição. Começa numa altura em que tudo é marcante, mais vivo, mais significativo para o futuro - na infância.
Outra oportuna questão seria: como isso a afectou no seu dia-a-dia?
O ingresso no curso de Medicina foi a cereja no topo do bolo. Não havia elogio que pudesse vencer esse facto - entrar no curso com maior média do país era, por si só, só para os melhores, pensava eu.
Daí que possa dizer que os primeiros tempos de faculdade foram de verdade os mais difíceis. Os métodos que trazia detrás não eram suficientes. Não era suficiente resumir a anatomia, aliás, era estúpido, com a enorme quantidade de matéria que tinha para saber... E não sabia decorar músculos em voz alta até em então (creio que hoje ainda não sei decorar de forma eficaz seja o que for).
Perdi toda a coragem para tirar dúvidas e participar nas aulas: "e se dissesse algo incrivelmente parvo ou se perguntasse algo básico e todos se rissem de mim? Não...não posso arriscar assim...melhor sorrir, fazer de conta que se percebeu tudo e pesquisar em casa sozinha." O problema era que em casa, ou havia outras coisas para pensar, ou continuava sem perceber...
Habituei-me à ideia de que éramos todos inteligentes. Vivia realmente feliz com a minha miserável média, sem sequer pensar muito nela... Achava que ela não era importante. Deixei de competir com todos, excepto com o meu namorado, que entrou em Medicina na Universidade Nova de Lisboa no mesmo ano. Por mérito próprio, por facilitismos ou por ambos, provavelmente, começou a atingir notas que, no meu inocente ver, eram só para os sobre-dotados. As pessoas "normais" tiravam 13 e 14...as pessoas normais "passavam a anatomia". Os sobre-dotados tiravam 17 e 18 a bioquímica, e não se limitavam a passar a anatomia, faziam-a com notas superiores a 16. Se a relação não era muito sólida, devido à distância, devido à imaturidade, aí quebrou (não só devido a isto, mas também).
Como o tempo apercebi-me que tirar boas notas era uma questão de esforço, dedicação e claro, alguma capacidade mental... Entrei numa nova etapa: competir silenciosamente com os mais próximos e conhecidos, marcar objectivos que se pudessem igualar-se aos dos outros, por vezes claramente mais elevados do que aquilo que posso atingir... Deixei de me respeitar. Deixei de ter em consideração os meus limites. Ao fim de 4 anos não posso negar que já me conheça! Sei perfeitamente que quando chega a meia-noite tenho de ir dormir, independentemente se no dia seguinte tenho ou não uma oral importantíssima, independentemente de saber ou não a matéria toda. Vou dormir e pronto! Sei que para mim é mais importante passar umas boas horas com a malta, do que estar fechada em casa a estudar... apesar de adorar aprender, socializar para mim é mais importante!
O que consegui com isso? Nada de produtivo. As notas não subiram em flecha como eu esperava, não me tornei mais feliz por subi-las ligeiramente, e pior, sentia-me frustrada por não alcançar aquilo a que me tinha proposto.
Depois perguntaria: Porque não pára? Porque não consegue acordar um dia e não pensar naquilo que os outros conseguem e você não?
A esta ainda não sei responder correctamente, mas poderia tentar.
São muitos anos a ser "a melhor" e de repente um corte brusco. Sei que tenho qualidades nos vários parâmetros da vida, sei que sou única pelo aquilo que sou e consigo facilmente, mas sinto-me inferior.
E depois poderia finalmente analizar-me:
O Homem está condenado a ser ganancioso, por não saber ser livre e simples. Não sabemos viver com aquilo que temos, apenas nos preocupamos com o que ainda não temos, mas o vizinho já tem... O vizinho pode não ter outra coisa que temos nós, e ele vai sentir o mesmo em relação àquela nossa virtude que na sua visão, tanta falta lhe faz.
E depois tornámo-nos mais que gananciosos. Já não só desejamos o fruto do outro, como o invejamos... Usamos as mais avançadas defesas pessoais, para justificar os nossos sentimentos negativos e dizemos "sou assim porque cresci assim, porque me educaram assim".
Procuramos aperfeiçoar as virtudes que sabemos deter e que sabemos causar também alguma inveja ao vizinho, procuramos actividades só nossas, para ganhar avanço. E vamos pensando "oh, eu posso não ser quem tem a melhor média, mas sou o melhor em..." Com o tempo vamos alimentando essa ideia e de facto poderemos até não nos importarmos mais com a média ou seja o que for, mas isso não acontece porque ultrapassamos esse defeito. Pelo contrário, acontece porque lhe demos alimento interno durante muito tempo, porque contornamos a situação...
O pior é que isso vai acontecer sempre, toda a vida, sob diferentes máscaras. Eu sei que terei desafios constantes, metas, competições, avaliações. E nesta profissão que escolhi, terei para sempre que provar que mereço o meu lugar. Provar aos meus tutores e aos meus colegas mais directos, aos doentes que confiam em mim e a sobretudo, ao "eu pessoal e interior"... Mundo cão, mundo selvagem este dos médicos...
E chego a um ponto em que tudo me parece um ciclo constante. Já não há mais perspectivas, apenas poderia retomar o início e voltar a encadear tudo, o que certamente o leitor não iria apreciar. Posso voltar a repensar tudo e a dúvida permanece: como quebrar este ciclo?
E agora o que me volta a preocupar é: sou só eu assim, ou somos todos? Poderei eu usar o plural? E volto ao ciclo da competição, porque é difícil não se competir, até nos defeitos...