terça-feira, 31 de março de 2015

Crónicas e Reflexões de uma Interna em MGF - Somos jovens: somos de Confiança? -


         Há sempre pessoas com quem sentimos mais empatia. Aquela era uma senhora de 80 anos, independente para as suas atividades da vida diária, extremamente atenciosa, que eu adorava receber nas consultas de vigilância. De mês a mês lá vinha ela, toda bonita e sorridente, saber se se tinha comportado bem e o seu INR estaria ou não bem.
         Certo dia fui eu quem fez a consulta, sozinha:
         “Bom dia, Sra. Ana, faça o favor de entrar e de estar à vontade.” – Introduzi eu. Ela cumprimentou-me e sentou-se devagar, porque a idade não perdoa a partir de certa altura.
         “Hoje serei eu a fazer-lhe a consulta, se não se incomodar com isso.”
         “Não, claro que não!” – já a preparar o dedo para a picadinha. E depois continuou: “Sabe doutora, há pessoas que não gostam de ser atendidas por médicos mais jovens, porque dizem que não sabem nada. Eu acho isso uma estupidez, desculpe-me a palavra. Eu confio plenamente na doutora, porque se aí está é porque sabe o que está a fazer.”
         Foi a primeira vez que alguém me dizia de forma tão direta o que todos nós sabemos. Não é por acaso que o meu marido deixou crescer barba desde que entrou na faculdade de Medicina e nunca mais a cortou por completo. Diz que se o fizer, os doentes não confiam nele. E não é por acaso que se nota um esforço de transformação, de crescimento, das médicas quando começam a trabalhar. Até as que dantes não ligavam nada ao que vestiam e à forma como apareciam na faculdade, começam a usar um pouco de base na cara e uma sombrazinha. Aquela senhora tocou em questões bem pertinentes – seremos nós preparados o suficiente nos tempos de estudo para o que de facto se passa numa consulta? Não, autonomia não se aprende na faculdade nem sou a favor dela logo após o seu término. A nossa imagem é importante para demonstrarmos aos outros que sabemos o que fazemos? Claro que sim! Confiaríamos da mesma forma num advogado que em vez do fato e gravata usasse calças de ganga rasgadas e uma T-shirt decotada e de manga cava a mostrar a enorme tatuagem de uma caveira no deltóide? São claro juízos de valor, mas todos os nós os fazemos, todos os dias.
         Naquela consulta de vigilância de INR eu de facto sabia o que estava a fazer, e sabia o que teria de alterar e como caso o resultado não estivesse dentro dos parâmetros objetivados. Naquela consulta eu podia e fui realmente autónoma. Acho que o mais importante é ter noção de si mesmo. Alguém que se dedica demasiado à vontade de parecer melhor do que o que realmente é, ilude-se. Pedir ajuda, parar quando não se sabe qual o é o próximo passo, perguntar como e porquê – aquilo a que se resumo a ser humilde – parece-me a melhor forma de se evoluir.
         Confiança é algo que o doente jamais poderá deixar de sentir numa relação médico-doente. Como poderá o doente seguir a medicação prescrita se não estiver devidamente esclarecido, se não confiar que aquele médico sabe o que está a fazer? Muitas foram as vezes que assisti a pessoas virem ao consultório dizer que foram à consulta desta ou daquela especialidade, ou foram à urgência do hospital, e que lhes foi prescrito isto ou aquilo. Mostram as receitas ainda por comprar ao seu Médico de Família e depois perguntam: “Isso está bem?” Será que as pessoas são sempre e todas elas desconfiadas, porque a mãe natureza achou que a desconfiança era uma excelente proteção, ou serão os médicos, especialmente os mais jovens, que não sabem transmitir essa tão grande necessidade – confiança?

sexta-feira, 27 de março de 2015

Crónicas e Reflexões de uma Interna em MGF - Os Médicos da Comunidade

(NOTA: Todos os relatos aqui referidos são baseadas em factos reais. Para preservar a identidade das pessoas às quais me refiro, alterei os seus dados biográficos.)


Basta deixar-nos perder pelas ruas menos populosas e mais distantes do centro da cidade e encontramos uma nova realidade. Não parece a mesma, não parece sequer o Portugal dos castelos turísticos. Ali as casas são tijolos sem revestimento, a comida é feita na lareira para se economizar mais um pouco de gás, e a minúscula sala de estar, se assim se poder descrever, é agora o quarto do doente acamado. Cheira a fumaça.
Também as pessoas são diferentes das que se vê na cidade. São mais humildes, mais gratas, e fazem questão de oferecer as laranjas que estão a cair ao chão pelo excesso que brotou da árvore, pois afinal, “estragar é pecado”.
Quando entramos vê-se no rosto daquele casal um misto de gratidão e vergonha por ali estarmos. Eu sou afinal de contas, e apesar de ser devidamente apresentada como a Interna que está a acompanhar o médico, uma anónima em sua casa. O seu médico de família não, não é um desconhecido. Aqui o médico é a pessoa que sabe já de cor onde moram e já não se admira com a falta de condições, embora sempre o impressione. Nos domicílios ou no Centro de Saúde, se a doença alivia um pouco e os deixa sair de casa, o ambiente em que se encontram é sempre já familiar, e não as urgências ou um consultório impessoal do hospital.
É claro que os médicos estão a fazer o seu trabalho, e como tal ganham também por fazer domicílios, mas gosto da ideia romantizada de que é impossível não fundir um pouco o trabalho propriamente dito com um toque especial de humanidade. São os velhinhos quem mais necessita e aprecia a visita e cuidados do médico, e no meio da solidão ou da pobreza que muitas vezes se associam, uma cara conhecida, as explicações repetidas com muita calma, faz a diferença. Gosto de pensar que mais que um emprego ou pelo trabalho, há uma missão, e que essa missão melhora, nem que seja um pouco, o mundo e a vida das pessoas.

terça-feira, 10 de março de 2015

"Que decidiste?"

Falava-se que os internos este ano não poderiam desistir do ano comum para voltar a repetir exame até Junho, como ocorrera noutros anos, e teriamos até Fevereiro para tomar essa decisão. Negociações para lá e mais negociações para cá, reuniões e mais reuniõezinhas com o Ministério da Saúde, a Ordem dos Médicos, etc e parece que tudo fica como estava para mim. Portanto ainda vou a tempo se quiser voltar a estudar (o sonho de qualquer estudante de medicina é estudar o harrison não uma, mas duas vezes! =/ ) Ser médico em Portugal está cada vez mais complicado. Há imensos colegas que preferem trabalhar no privado, em deterimento das más condições do público, já para não falar dos muitos que emigram para outros países da europa para fazer a especialidade. Agora que gozei férias, se tivesse de estudar de novo para o Harrison para tentar de novo Ginecologia, seria capaz. Mas mais do que ser impulsivos e só querer seguir numa determinada linha, hoje em dia é preciso ser-se inteligente na escolha da especialidade. É o conselho que mais ouço, quase diariamente, das mais diferentes pessoas (desde colegas mais velhos, outros funcionários públicos, ou até mesmo doentes bem informados). Por isso desistir do Ano Comum não é a minha primeira opção...Creio que irei fazer este ano e escolher outra especialidade. Qual? Esse é o problema número dois. Em Abril vou fazer estágio de Psiquiatria para Aveiro e vai ser o ponto que me faltava para a decisão final.

quarta-feira, 4 de março de 2015

"o Ano Comum é o melhor ano para casar"

Ao longo dos anos, e de forma mais intensa no 6º ano e quando estamos a estudar para o Harrison, os colegas mais velhos fazem-nos acreditar que o esforço compensa, que vamos adorar estar no Ano Comum, "que é o melhor ano das nossas vidas". Agora que cá estou, confirmo. Temos responsabilidade na dose certa para quem está a começar, uma asa protectora sempre por trás das nossas decisões clínicas. Como tenho estado no centro de saúde, noto mais isso nas consultas em que a minha tutora que deixa fazer sozinha a entrevista, exame físico e até a prescrição (e aqui eu paro sempre, à espera de aprovação antes de mandar imprimir as receitas). Outra coisa que sempre ouvi falar é que este ano era o melhor ano para se casar, porque havia mais tempo para a organização dos ditos preparativos, não há problemas em parar o internato para se gozar as férias, etc. Pois bem, posso dizer também por experiência própria que é verdade! Casei há pouco mais de 2 semanas! (Isto também serve de mais um exemplo, que eu faço questão de salientar, de que os estudantes de medicina têm efetivamente vida social, têm namorados(as) e também se casam! Fantástico!) E eis que tive as férias merecidas, pelas quais aguardava já desde os tempos em que estava a estudar para o Harrison...