segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

A primeira vez...

Na passada quarta-feira acordei e pensei: "Um dia vou fazer uma historia clínica sozinha... Hoje é o dia!". E assim foi, um dos melhores dias que já tive. Graças à Raquel, a minha colega de quarto, não pude desistir nem adiar, ela foi comigo para me sentir mais segura e me ajudar, caso bloqueasse... Como ela anda no 5º ano de medicina, já está "farta" de fazer historias clínicas e foi a peça fundamental.
Então lá fomos nós... Assim como a cidade, o hospital estava deserto. Não se viam médicos, nem doentes, nem agitação. Apenas pessoas internadas que aguardavam a hora das visitas para lhes acabarem com a solidão. Uma vez que nas aulas de Propedêutica Médica estamos sempre no sector dos homens, quis começar pelas mulheres. Fizemos história a duas senhoras: a primeira, por coincidencia, é avó de uma colega minha do 3º ano (passou mais tempo a falar da neta, que só conheço de nome, do que da doença; além disso a senhora era enfermeira e à medida que a conversa foi avançando comecei a perceber melhor o que a minha professora quer dizer quando diz "fazer historia a profissionais de saúde é bastante complicado").
A Raquel teve de intervir na maior parte do tempo, sejamos justos. Aquilo foi a primeira vez que entrevistei alguém, mas foi mais ela que eu... Eu refugiava-me nos papeis, e olhava para ela como quem diz "e agora?"... Foi cómico.
Na segunda senhora decidi não apontar nada: apenas me concentrar no que ela dizia. As coisas começaram a fluir naturalmente e quando dei por mim estava a ausculta-la. E então foi a primeira vez que usei o meu estetoscópio para fins verdadeiramente diagnósticos.
Como  a Raquel tinha de fazer uma Historia Clínica para avaliação de ginecologia demos um salto ao piso 9. E o que se encontrou lá? Mulheres! EnfermeirAs, médicAs, auxiliares e doentes, tudo de um só sexo, foi assustador! E pensar que quero isso para mim... Enfim, acabamos por desistir porque as senhoras que lá estavam ou tinham visitas ou então tinham problemas aos quais os alunos não estão autorizados a fazer entrevista, como tumores malignos.
"Não queria que fosses embora sem ouvires um sopro ou qualquer coisa gira no coração de um doente!"... "Ok, vamos a Cardiologia..."..."Bora!" E lá fomos... No corredor, a um senhor velhinho que caminhava em sentido oposto ao nosso disse "Boa tarde", visto que nos olhava fixamente de forma simpática. E ele responde "Boa tarde, senhora Doutora"... E então foi a primeira vez que fui assim tratada, num contexto hospitalar. Lá encontramos um cavalheiro sentado a ler o jornal e entramos, pedimos para falar com ele e esse sim, foi o momento mais "fantástico" (não é bem essa a palavra) do dia. Ele era oficial do exercito, um cavalheiro mesmo daqueles que já não existem! Não apontei nada, não fiz perguntas dirigidas para obter informação, só queria aprender a viver com ele, só quis aproveitar o momento. Dizia ele que a maior felicidade da vida era plantar um feijão, ou milho e ver a terra castanha e no dia seguinte vê-la verde, com rebentos e ajudá-los a nascer, que aquilo era vida simples...

Viemos embora com um sorriso de orelha a orelha, 3 horas depois de termos saído. Foi a tarde mais compensadora de sempre: e o melhor é que consegui vencer o medo de entrevistar um doente à frente de outras pessoas, sem saber como lidar com as respostas deles, etc etc etc... Simplesmente agora sinto um nervosismo natural e as perguntas fluem. Obviamente que faltam anos de experiência para fazer a diferença: as perguntas da Raquel eram perfeitas, adequadas, contextualizadas e fundamentadas. E eu pensava "Exactamente, era isso que devia ter perguntado..."
Por simpatia ou delicadeza, disse-me no final que na última entrevista eu tinha sido muito segura, tinha feito as perguntas certas, estava muito bem... Curiosamente, foi nessa que senti mais descontracção...
No final do dia tinha um papel colocado na parede da minha cama que dizia "Um dia vais ficar "farta" de fazer histórias clínicas, MAS nunca deixes de as fazer com a mesma sensibilidade que fizeste hoje"... 
Acho que nunca vou esquecer este dia!

1 comentário:

  1. Comecei a ler seu blog agora e vim subindo do primeiro de outubro até este e foi a publicação mais bacana que encontrei, te parabenizo pelos sentimentos e ações que teve esse dia, me passou um pouco de inspiração!

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