domingo, 8 de maio de 2016

Medicina Interna

Aos colegas que vão escolher especialidade em Junho e consideram Medicina Interna:

Sou casada com um aspirante a internista. Tenho amigas de faculdade que escolheram também esta especialidade.
Vou falar daquilo que eu vejo, que estou meia dentro do assunto, meia fora.

Para quem gosta de especialidades médicas, Medicina interna é uma especialidade muito estimuladora mentalmente, muito completa, e por isso exige muito estudo. Isso todos nós sabemos. Devo confessar no entanto que me senti admirada quando dia após dia, o meu marido chegava a casa com imensos papeis para ler...eram guidelines, eram artigos, eram revisões de tema... Ele, que não estudava lá muito na faculdade, porque lhe bastava ir às aulas e o cérebro dele era tipo esponja, sentava-se no sofá, não para ver TV, mas para ler.
Não se enganem, vão ter de estudar ou vão fazer figuras menos felizes diariamente no internamente e na urgência.

Depois, as urgências: desde que a lei mudou, e estando em hospitais que a fazem cumprir, as coisas não são más. Faz apenas e somente 12 horas/semana. Ora...isto porque está num hospital simpático, que definiu que os internos do 1º ano fazem apenas noites a partir de Julho (para terem meio ano de mais apoio, uma vez que à noite não há as especialidades todas). Também porque está num hospital simpático, não faz mais que uma urgência por semana. Não há urgências extras obrigatórias..só faz quem quer e pode...e com limite máximo de 6 urgências/mês. Em termos de organização, também não se pode queixar, uma vez que ele ficou a saber, com um ano de antecedência, que vai ter de fazer o dia de Natal. Em Janeiro, recebeu a planificação das urgências para o ano inteiro! Não pode jamais dizer, nem eu, que não sabíamos!

Sobre a formação propriamente dita: faz um pouco de tudo, que creio ser a essência da MI. Em apenas 4 meses de internato (vamos descontar o Maio que ainda vai no inicio), já diagnosticou e orientou alguns enfartes, já fez pelo menos 2 cardio-desfibrilhações na urgência que eu me lembre, porque não têm Cardiologia aos fins de semana. Já fez paracenteses, porque não há gastro disponível sempre... Também se bem lembro já fez prai umas 5 toracocenteses...lá está..porque não pneumologia de urgência.
Pelo que me conta, têm muito mais do que pneumonias internadas... Têm doenças auto-imunes para estudo, têm endocardites infeciosas, têm linfomas para estudar...e lá vão fazendo de tudo, porque não têm as especialidades todas.
Pelas contas da ordem dos médicos, é suposto um interno ter 200 doentes no internamento ao longo do ano. Ele já teve 110, em 4 meses...acho que não será difícil atingir os mínimos.
Já devem ter percebido que estou a falar de um hospital que não é central. Então para quem gosta de trabalhar, já perceberam que devem ponderar bem esta questão.

E sobre a investigação e essas trapalhadas todas, que os hospitais centrais são espectaculares e têm faculdades??? Isso é com tudo na vida meus caros...quem quer, faz! Já não estamos na primária, não temos de estar a espera que nos proponham fazer isto ou aquilo...Podemos e devemos ser nós a propor trabalhos, a mostrar o interesse...


E então?

Somos mesmo muitos internos em MGF, somos a especiliadade que mais médicos absorve por ano. Isso leva a alterações inevitáveis. Os estágios obrigatorios que antes eram de 3 meses, passaram a ser de apenas 2. Os exames finais a esses estágios, que habitualmente eram sob a forma de oral perante 2-3 especialistas, vão este ano passar a ser provas escritas, num só dia, igual para toda a região Norte. Alterações sao sempre alterações, e gostamos mais de lidar com aquilo que conhecemos na maior parte dos casos, mas não posso deixar de pensar que deverá ser mais justo assim... É provável que as notas desçam, e agora sim, vai parecer que voltamos à faculdade!, mas por outro lado, havia muitas discrepâncias nessas tais "orais".

O exame final de especialidade também foi efetuado de forma diferente este ano pela primeira vez. Agora é composto por discussão curricular, exame prático sem doente e um exame escrito de escolha múltipla de 100 perguntas, que segundo sei tinha uma bibliografia tão grande que nunca mais acaba, cheia de artigos, livros e cenas, que ainda por cima ao que parece lá se vão contradizendo. Foi um descer sem visto nas notas finais... Dos internos que se apresentaram a exame, haverá vagas para apenas 1/3 deles ficarem a trabalhar na zona norte...os restantes 2/3..nao sei... Podem ficar a trabalhar no sector privado, podem ter de mudar de casa e ir para outra zona do país, podem emigrar...São livres.

O impacto emocional que isto tem em mim é pequeno, muito sinceramente. Estou apenas no 1º ano, é provável que em 4 anos as coisas ainda mudem e voltem a remudar.
Tenho conseguido manter a minha sanidade mental no meio disto que já parece ser uma pequena selvinha de pessoas que lá se vão rindo umas para as outras, mas que no fundo devem andar a pensar "será que ele já tem mais trabalhos feitos do que eu?".
Seria muito fácil stressar com estes valores... Pensar que daqui a 4 anos apenas 1/3 dos que este ano entraram em MGF no norte, vão continuar por cá...e seria muito fácil entrar em desespero, tentar ter o melhor currículo de toda a região norte, ir a 10 cursos por ano... Acreditem ou não, todas as semanas são divulgadas jornadas, cursos, palestras, sessões clínicas, etc etc etc, que caem diretamente nos nossos emails... Tenho conhecido pessoas que dizem que é raro o fim de semana em que não têm um cursinho qualquer para fazer...
Decidi que não me vou deixar levar nessa corrente. Decidi que não vou fazer cursos que não têm interesse para a minha formação. Não vou realizar trabalhos em que eu não goste do tema. Vou ser fiel a mim mesma. Vou aos cursos de temas em que eu sinta necessidade de formação, para ser melhor, para saber tratar os meus doentes, não para "curriculite". Se vou ficar para trás? Provavelmente não, porque o espírito que me vai conduzindo dia a dia é humilde, e acho sempre que tenho de estudar mais, por isso lá vou eu fazendo imensas coisas ao mesmo tempo...

E toda esta conversa começou por eu dizer que somos mesmo muitos internos em MGF. É natural que não vá haver vagas para todos. Até lá, o que podemos fazer?? Acordar, dia a dia, e tentar ser o melhor médico de família possível, porque não temos a capacidade para mudar nem moldar nada.
Mais vale sermos felizes dia a dia.